O REFLEXO DOS JOGOS NA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA
E o que as grandes desenvolvedoras podem aprender com a irmã mais velha da indústria do entrenimento.
Atenção: esse texto contém spoilers para “A Substância”, “Longlegs”, “Alan Wake 2” e “Inside”.
O cinema mainstream está passando por uma temporada de pequena renovação. Com as férias impostas pela audiência à maioria dos filmes de super-heróis, que após alguns fracassos (se é que podemos chamar bilheterias milionárias de qualquer sinônimo de fracasso) estão tendo que se reorganizar, as telonas pelo ano de 2024 respiraram um pouco com sequências que pareciam esquecidas, novas propriedades intelectuais e abriram espaço até para produções de fora de Hollywood.
Como nem tudo são flores, é claro que ainda temos campeões de bilheteria como Deadpool & Wolverine ou a sequência de DivertidaMente no topo das 5 produções com maior bilheteria. Mas não são esses filmes - ou a saturação inerente que causam ao mercado - que quero falar sobre nesse texto.
O cinema tem suas raízes em 1895 e nesses últimos (quase) 130 anos se tornou um dos principais emblemas e sinônimos de entretenimento. Ao longo deste século, o cinema estabeleceu técnicas, impulsionou as produções televisivas e transformou a maneira em que a sociedade absorve e entende a arte.
Durante esta jornada, vimos nascer também os vídeos-jogos, pequenas operações eletrônicas que envolviam códigos de computadores respondendo aos comandos do jogador. Tal qual outras produções midiáticas, os jogos também foram massivamente influenciados pelo cinema, principalmente nos últimos vinte anos, quando os consoles e as desenvolvedoras começaram a ter a capacidade técnica de reproduzir alguns "truques" do cinema.
Enquanto ultrapassado atualmente, GTA Vice City (2002, Rocksteady) e GTA San Andreas (2004, Rocksteady) são clássicos que provavelmente qualquer jogador já teve algum contato. Os jogos simulam a "vida real" e violenta dos seus protagonistas, inseridos em tramas dignas de qualquer filme com o Vin Diesel. Merece menção também as produções de David Cage, que desde Farenheit (2005) tenta reproduzir um filme dentro de um jogo. Ou um jogo que pareça um filme. Ou um filme que pareça um jogo.
Enquanto se David Cage teve êxito ou não em suas produções é um ponto de discussão (eterna) dentro da comunidade gamer, é certo que Beyond: Two Souls (2013) e Detroit: Become Human (2018) não foram os últimos exemplos de jogos "cinematográficos", ou seja, jogos com produção focada em hiperrealismo, limitando a jogabilidade a favor de narrativa, empregando técnicas mais observadas no cinema do que em jogos em si.
Pelo contrário, as produções cinematográficas se tornaram uma marca que várias desenvolvedoras parecem almejar atualmente. Não só existe um gênero de jogos narrativos desenvolvidos para se assemelharem à filmes (por exemplo, quase todos os jogos da Supermassive Games), como vários jogos de aventura e RPG desta geração - God of War (2018, SIE), sua sequência God of War: Ragnarok (2022, SIE), Final Fantasy XVI (2023, Square Enix), Spider-Man 2 (2023, SIE) - estão cada vez mais explorando as capacidades gráficas atuais e entregando produtos que prometem uma experiência narrativa, sonora e gráfica similar a de um filme, com a diferença que o jogador estaria no controle dos eventos e destino dos personagens e suas tramas.
Ocorre que, apesar da absorção de aspectos cinematográficos pelos jogos, talvez seja a hora de encaramos que o cinema também, aos poucos, começa a reproduzir aspectos que foram observados em um primeiro momento em jogos.
Não estamos comentando de adaptações direta, como a série da HBO de The Last of Us (2023), ou de filmes como Borderlands (2024) ou Super Mario Bros. - O Filme (2023), ou até mesmo das adaptações inspiradas em Resident Evil (2002), mas sim de pequenas fontes de inspirações que talvez tenham originado de um jogo. Avaliando esses aspectos, há de se observar que existe o meio perfeito para se observar a reprodução de alguns enquadramentos e truques: o terror.
Retornando ao cinema, fomos presenteados com duas excelentes produções em 2024, que abordam aspectos diferentes de terror e do horror que habita nosso corpo - Alien: Romulus, dirigido pelo uruguaiano Féde Alvarez e A Substância, dirigido pela francesa Coralie Fargeat. Na humilde visão deste que vos escreve, ambos os filmes tomam pequenas inspirações de jogos de terror/suspense para expandir a visão e o impacto que pretendem passar ao espectador.
Em Alien: Romulus, o primeiro ato do filme nos bombardeia com cenas banhadas em luzes vermelhas, enquanto nossos jovens protagonistas tentam recuperar combustível para uma longa jornada interestelas. O enquadramento da cena e a iluminação utilizada nas cenas traz muito à memória diversas cenas introdutórias de Control (2019, Remedy Entertainment) em que a protagonista também é banhada pela incidência de luz vermelha com estranhos corpos que parecem ignorar a gravidade:
(Control)
(Alien: Romulus)
Já no último ato da trama de A Substância, a "antagonista" Sue (interpretada pela incrível Margaret Qualley), após matar sua... cara-metade Elizabeth Sparkle (interpretada com excelência pela indescritível Demi Moore) decide reutilizar a substância nominativa do filme e em um espetáculo de gore e body horror se transforma na "melhor criação" da indústria do entretenimento dominada pelo machismo, a Monstroelisasue - um aglomerado de carne, sangue e tumores com pouco controle sobre suas capacidades mentais e físicas e... levemente parecido com a criatura que o protagonista de Inside (2016, Playdead) se torna ao fim do seu jogo (carinhosamente apelidado de Blob).
(A Substância)
(Inside)
Ainda em 2024 tivemos o lançamento de Longlegs, dirigido por Osgood Perkins. O filme narra a trama de uma agente do FBI, Lee Harker (interpretada por Maika Monroe), que é escolhida pelos seus superiores para identificar e prender o assassino em série que deu origem ao nome do filme. Como nada é simples, o filme mistura aspectos de investigação a lá "True Crime" com influências mágicas e (talvez?) satânicas! O cenário agora descrito não é muito diferente do que Alan Wake 2 (2023, Remedy Entertainment) nos apresentou.
(Longlegs)
(Alan Wake 2)
Claro, pode-se argumentar que Control em si bebeu da fonte de outros filmes de terror e suspense, inclusive do primeiro Alien datado de 1979. Também não queremos argumentar que a Playdead inventou o conceito de monstruosidade com Inside, ou muito menos que a Coralie Fargeat fez um control + c/ control + v, ou que Longlegs e Alan Wake 2 foram as primeiras mídias a misturar investigação com elementos que podem ou não ser místicos com um quadro de investigação, principalmente pelo fato de que as nuances de cada uma dessas obras divergem em direções opostas.
O que se pretende trazer é a possibilidade de que a indústria cinematográfica, a que vem impactando nossa maneira de consumir arte e entretenimento, começou ao longo dos últimos anos a sofrer influência de outros meios, dentre estes, os vídeos-jogos - os quais, por sua vez, estão constantemente sendo influenciados pelo cinema e almejando se igualar à produções Hollywoodianas.
Não é impossível que a equipe de Féde Alvarez tenha conceituado quadros da narrativa com inspirações de Control ou que A Substância tenha referenciado outras mídias além das adatapções cinematográficas dos livros de Stephen King.
Porém, o que podemos observar é que, apesar desta relação "semi-simbiótica" estar estabelecida, o Oroboros do cinema e dos jogos não é tão sustentável quanto parece. Enquanto A Substância passou 2 anos em produção/pós produção com um custo de R$ 17,5 milhões de dólares, teve uma bilheteria de R$ 25,5 milhões.
Em paralelo, God of War: Ragnarok custou R$ 200 milhões de dólares, levando 5 anos para a conclusão do seu desenvolvimento.
Desde então, o jogo passou mais de um ano travado atrás do Playstation 5, o console de última geração da Sony que teve sua produção e vendas atrapalhadas pela crise de insumos causadas pela pandemia do COVID-19.
Este cenário concretiza a crise atual da indústria de jogos. Na ânsia de se tornar mais parecida com sua irmã mais velha, as produções dos grandes estúdios se revelam mais caras, com maior tempo para conclusão, submetendo os desenvolvedores e designers gráficos a condições absurdas de trabalho.
No biênio atual (2023 - 2024) já ocorreram mais de 23.000 demissões no mercado de jogos, envolvendo estúdios de renome como Blizzard, Epic Games, Take-Two Interactive e Riot Games, sem contar as inúmeras denúncias de "crunches", períodos em que as equipes de desenvolvimento não conseguem ir para a casa nem aos finais de semana para tentar cumprir os prazos absurdos de lançamento dos seus projetos.
Enquanto uma análise profunda é sempre necessária para entender as motivações e reflexos de demissões em massa, é evidente que a produção atual não se sustenta mais. Os custos estão elevados e os lucros, quando presentes, não impedem as desenvolvedoras de demitirem seus funcionários em um piscar de olhos.
É natural que o cinema se inspire em camadas dos jogos, quando estes conseguiram alcançar novos níveis de narrativa e técnica, pela própria natureza da sua produção, mas é inviável que a indústria de jogos continue a perseguir o projeto atual de desenvolvimento inspirado na máquina de Hollywood: 5 - 10 anos para um lançamento. Custos elevados. Demissões em massa. O lucro da indústria não está retornando para quem faz os jogos que dão à indústria o lucro.
A maior lição que os jogos devem absorver agora do cinema é o básico de qualquer indústria: produções boas, com custos controlados. Valorização do seu staff. Distribuição universal (o quão universal o capital nos permite ao menos) a um custo-benefício sustentável. A criatividade deve prevalecer sobre gastos desnecessários com tecnologias que não estão nos levando a lugar algum e só estão servindo para encarecer os produtos da indústria.
Se não houver mudanças e o Oroboros da indústria de jogos continuar o ciclo da última década, não vai mais ter corpo para se alimentar. Não dá para viver só de demonstração técnica e remasterização.